terça-feira, 29 de novembro de 2011

Seja como for, fez-se noite. E frio. É quase Inverno mas ninguém diria que ainda falta o quase. E a música replica o sabor das avenidas, o cheiro da solidão dos corpos. Há uma voz sempre a moldar a cor das paredes, a rasgar a monotonia dos espaços vazios. Quase me deixo rir. Quase me deixo cair. Mas o chão é já ali- não magoa. E sabemos que uma queda sem dor não acrescenta nada ao que podemos vir a saber.



"(...)Quando começou o tempo e onde termina o espaço?
Será que a vida sob o sol nada mais é que um sonho?/Será que o que vejo, escuto e cheiro não é apenas/uma miragem do mundo anterior ao mundo?/Será que realmente existe o Mal e pessoas más?/Como é possível?/
Eu, que sou eu, não existia antes de existir./E, no futuro, eu, que sou eu,/
não serei mais quem eu sou."Lied Vom Kindsein, Peter Handke
in: Wim Wenders, Asas do Desejo



chegas sempre depois, dizes. e eu penso por aforismos. largo-os como quem crava pregos nas paredes para lhes arrancar o estuque. e são essas as marcas que vou esculpindo inverno fora, como se não fosse possível remendar as artérias que nos guiam pelos corredores das casas.sabes sempre como acertar o relógio. como quem acerta o passo na direcção oposta à minha. eu atraso-me. mas apenas na esperança de te encontrar pelo caminho.


terça-feira, 22 de novembro de 2011

tenho recados nos bolsos. chaves em contra-mão. moedas perdidas (cara ou coroa?). lume. e, de vez em quando, as mãos frias. tenho sempre a ilusão de que os bolsos são como as casas no topo das árvores: refúgios de crianças atormentadas pelo fim do verão.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

fingir mais um pouco
só mais um pouco
um instante de mentira por entre os dedos
segurar-te
prender-te
o vento rasgar as janelas
romper a corda
e libertar-me do pássaro em que te tornaste



foto: Helena Almeida

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Morro, ao perder-te nesta fronteira em que as águas fluem. Saio de entre as cinzas, levando o brilho de um movimento que se confunde com a hesitação do ser, enquanto me pedes que abandone o lastro de inquietação para que as portas se voltem a abrir. Mas aonde ir? Em que cafés fechados voltarei a ver-te, olhando a rua, até que os olhos se cruzem num novo reencontro? Que portagem terei de atravessar para restabelecer o equilíbrio do mundo que uma simples dúvida fez oscilar no seu eixo e luta para trazer de volta a sua verdade? Que metamorfose é ainda possível, neste corpo em que a dissipação se instalou, e avança, como o fogo nos campos mais secos de estio? Que abraços se irão perder nesses parques abandonados, nas estradas ermas do bosque, ou nesse velho celeiro onde não fermentam já as emoções do desejo? Tu, ainda encostada à janela de onde vem um último aceno, ouve o grito, com a sua música terrível, e não percas o que nem os ventos puderam levar, com a sua tensa respiração. Nuno Júdice

quinta-feira, 3 de novembro de 2011